Meu avô nasceu, praticamente, órfão de pai — e desde então, o pão que o diabo amassou foi servido cru à mesa da infância. Cresceu em uma sociedade que ainda bebia da Constituição que tratava mulheres como extensão de seus maridos.
Imagine minha bisavó: mais jovem do que eu sou agora, com dois filhos nos braços — um deles uma criança atípica — num tempo em que Barbacena celebrava seus horrores manicomiais e o Brasil os tragava como quem bebe água do filtro da cozinha.
Ele teve que ser pai de si mesmo. Um pouco homem de sua mãe, um pouco pai de seus irmãos. O sacrifício foi seu seio materno. Numa terra onde homens matavam por barões comparsas, ele escolheu doar a própria alma por quem amava. Desde cedo soube — e talvez soubesse com a lucidez de quem já perdeu muito — que da vida, nada se leva. Só se deixa.
Foi estudante e, ao mesmo tempo, vendedor, garçom, fazedor de mil bicos. Depois, professor. Bancário concursado. Era um ponto fora da curva estatística: um verdadeiro “Capitão da Areia”, como diria Jorge Amado.
Com um pouco mais de incentivo acadêmico, arrisco dizer que teria sido um ilustre economista. Mas não foi o prestígio que o movia — era a vontade de servir, de ajudar, de estar presente.
E isso num mundo onde se normaliza o contrário: doutores que não ensinam, advogados que exploram pobres nas filas da previdência, médicos que atravessam a Europa com taças de cristal enquanto o SUS sangra em mil angústias. Engenheiros que reduzem a ciência à ferramenta de lucro instrumental, em vez de torná-la instrumento de reparo social.
Moésio Donato era, sobretudo, o grito que ecoava em gestos. O gesto dos meninos das calçadas. Das mães objetificadas. Dos pais engolidos vivos pelo capital. Ele representava todos os que, prematuramente, são lançados ao mar do mundo — esse mar que não é doce, nem raso.
Foi filho, pai, irmão. Foi doçura, foi cuidado. Da força bruta de Benjor aos amores eternos de Paulo Sérgio e Benito di Paula, carregava o espectro inteiro da sensibilidade humana. Transcendeu. Em vida, e — creio com o coração em vértices — ainda transcende.
Como evento astronômico. Partiu jovem, provavelmente como queria, sem a dor da prostração. Com a suavidade do orvalho. No velório, era como uma criança travessa fingindo dormir, segurando o riso no canto da cama. Assim o vi. Assim se foi: só deixando. Porque é isso que fazemos: deixamos. Não levamos.
Mas talvez, quem sabe, a gente ainda se encontre. Cedo ou tarde. Nem os átomos são precisos, quem dirá a vivência. E, no coração da literatura brasileira, penso nos Joaquins anônimos de Dalton Trevisan, esses tantos brasileiros que, como meu avô, comem o pão que o diabo amassou e ainda assim se levantam com dignidade.
E quando penso no amor — esse amor que não é só afeto, mas também projeto de mundo —, lembro do que se intui nas páginas de José Saramago: que amar é, também, uma forma de justiça. Que amar de verdade é romper com a indiferença e com o automatismo cruel do cotidiano.
Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida, vou te amar. E vou te fazer presente. Em cada gesto cotidiano. Nos meus silêncios e nos meus levantes. Ainda vamos nos reencontrar, em outro plano — longe da institucionalidade, dessa lógica violenta que se fantasia de progresso.
Eu vou fazer como você fez: sobreviver. E tentar — mesmo que só um pouquinho — tornar isso aqui um lugar melhor. A lição mais preciosa que você me deixou foi o cuidado. O carinho. A capacidade de segurar o mundo, mesmo quando o nosso próprio mundo transborda nas mãos.
Você me ensinou a empatia em sua forma mais pura. Enquanto muitos a doentizam, você a semeava. Você a desterritorializava. Você era flor nas ruínas, no concreto. Você é — e sempre será — mais do que essas palavras podem alcançar.