Domingo, 20 de Abril de 2025 23:31
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Brasil Autismo e reflexões

A Ilusão da Inclusão: Como Detrans e Empresas Ignoram a Realidade dos Autistas

A conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) costuma ser exaltada em campanhas pontuais, mas na prática, o que se vê é um abismo entre discurso e realidade.

03/04/2025 08h13
Por: Clara Santos
https://images.app.goo.gl/Wv38ZZZLRNuBJP239
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Muito se fala sobre inclusão, mas pouco se faz para garantir que autistas tenham acesso pleno a direitos básicos. Dois setores fundamentais da sociedade – os Departamentos de Trânsito (Detrans) e o meio corporativo – exemplificam essa contradição.

A falta de preparo dessas instituições não apenas dificulta a vida dos neurodivergentes, mas reforça estigmas que, em pleno século XXI, já deveriam ter sido superados.

Obter a carteira de motorista é um rito de passagem para muitas pessoas, um símbolo de independência. No entanto, para autistas, esse processo pode ser um labirinto sem saída. A maior barreira não está na habilidade de dirigir em si – afinal, a neuropsicologia comprova que o aprendizado da condução é possível para autistas com o devido suporte.

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O problema está no despreparo estrutural das autoescolas e Detrans, que, frequentemente, sequer consideram as especificidades cognitivas desses candidatos. Do que adianta criar vagas para autistas se o suporte oferecido a eles no processo de habilitação é vago e altamente pragmático, ignorando completamente suas necessidades reais?

Hoje, não há qualquer questionamento prévio sobre a neurodivergência ao iniciar o processo de habilitação. O ensino da direção é padronizado e, para muitos autistas, inviável: comandos vagos, mudanças súbitas no ambiente de aprendizagem e a ausência de metodologias adaptadas tornam a experiência frustrante e excludente.

A neuropsicologia indica que autistas podem ter dificuldades na integração sensorial e no processamento simultâneo de múltiplas informações – o que, sem o treinamento adequado, pode comprometer o aprendizado.

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Entretanto, métodos alternativos, como instruções mais diretas e segmentadas, uso de estímulos visuais e ambientes controlados, já demonstraram eficácia no desenvolvimento dessas habilidades.

No Brasil, há poucas iniciativas para corrigir essa lacuna. A criação de credenciais de estacionamento exclusivas para autistas por alguns Detrans é um avanço tímido, mas não resolve o problema estrutural.

A falta de padronização nas políticas públicas resulta em um cenário desigual: enquanto algumas unidades federativas tentam adaptar o atendimento, outras permanecem indiferentes, perpetuando a exclusão.

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Se conseguir uma habilitação já é um desafio, ingressar e se manter no mercado de trabalho sendo autista pode ser ainda mais complexo. Um dos maiores problemas do meio corporativo é a ausência de espaços seguros para que pessoas neurodivergentes se identifiquem sem receio de discriminação.

Poucas empresas perguntam, de forma sensível e responsável, se o candidato é autista – e, quando perguntam, muitas vezes é apenas para cumprir cotas, sem oferecer suporte real.

Esse ambiente de insegurança faz com que muitos profissionais optem por esconder sua condição, temendo o preconceito. A psiquiatria e a psicologia explicam que autistas processam informações de maneira diferente dos neurotípicos.

Eles podem ter dificuldades em ambientes ruidosos, serem mais sensíveis a estímulos visuais e auditivos, e necessitarem de uma comunicação clara e objetiva. No entanto, em vez de receberem adaptações, são rotulados como desorganizados, desatentos ou ineficientes.

Isso não é apenas um erro de gestão – é uma violação de direitos. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) estabelece a obrigatoriedade de adaptações razoáveis para trabalhadores neurodivergentes, mas a fiscalização é quase inexistente.

Além disso, a recente proposta da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência para punir atos discriminatórios contra autistas mostra que ainda há muito a ser feito. A inclusão não pode ser tratada como um favor: é um direito legal e inegociável.

O Brasil tem um arcabouço legal robusto que, se aplicado corretamente, poderia transformar a realidade dos autistas. A Lei nº 12.764/2012 reconhece o autismo como deficiência para todos os fins legais, garantindo acesso a direitos fundamentais.

No entanto, garantir direitos no papel não é o suficiente. Quando autoescolas e empresas falham em oferecer suporte adequado, não se trata apenas de omissão – trata-se de negligência, passível de responsabilização civil e judicial.

O Código Civil prevê que qualquer dano causado por ação ou omissão pode ser reparado na Justiça. Isso significa que autistas excluídos injustamente de processos seletivos ou impedidos de obter uma habilitação por falta de adaptação razoável podem processar as instituições responsáveis. Se leis como a Lei de Inclusão e a Lei Berenice Piana fossem aplicadas com rigor, empresas e órgãos públicos teriam que sair da inércia.

A realidade brasileira expõe um paradoxo cruel: nunca se falou tanto sobre inclusão, mas na prática, a acessibilidade para autistas ainda é um privilégio, não um direito garantido. O despreparo dos Detrans e do meio corporativo é mais do que uma falha operacional – é um reflexo de uma sociedade que ainda vê o autismo como um problema a ser contornado, e não como parte da diversidade humana.

Direitos básicos, como dirigir, estagiar ou ter carteira de trabalho, numa sociedade como a que vivemos hoje, sob o lençol do capitalismo tardio, ainda são praticamente bloqueados para muitos autistas.

Isso é tão bizarro quanto a época em que mulheres eram tratadas como objetos pela Constituição ou quando eram barradas de fazer qualquer coisa sem a assinatura de um homem que servia como seu “superior”.

Assim como o patriarcado estruturou uma sociedade onde as mulheres foram sistematicamente impedidas de exercer sua autonomia, hoje a ignorância institucionalizada faz o mesmo com os autistas, confinando-os a uma marginalização que não se justifica nem cientificamente, nem eticamente.

A inclusão real não acontece por meio de discursos institucionais ou campanhas sazonais. Ela exige ação contínua, mudanças estruturais e, acima de tudo, responsabilização daqueles que insistem em ignorar a dignidade de milhões de brasileiros neurodivergentes. Até que isso aconteça, qualquer discurso sobre inclusão continuará sendo apenas isso: discurso.

Para aqueles que desejam se aprofundar nos desafios e nas possíveis soluções para a inclusão de autistas no mercado de trabalho, recomendo a leitura do artigo “Autistas no mercado de trabalho: desafios e soluções”, publicado pela Você RH.

A matéria traz reflexões importantes sobre as barreiras enfrentadas por profissionais neurodivergentes e aponta caminhos para uma mudança real.

Informação e conscientização são essenciais, mas só a ação transforma realidades.

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