Oito de março. Acordamos com muitas mensagens genéricas, homenagens calculadas, promessas requentadas. O mundo nos lembra — “Força”, “resiliência”, “importância da mulher” — como se discursos vazios fossem um afago legítimo depois de séculos de domesticação, como se já não tivéssemos decorado essa ladainha vazia.
Mas, entre os elogios mecânicos e os sorrisos de circunstância, há um silêncio ensurdecedor sobre a verdadeira estrutura que nos atravessa, essa máquina bem lubrificada que transforma opressão em algo tão banal que nem precisa mais de esforço para existir.
O que ninguém menciona é que, no instante seguinte, o mesmo respeito que nos oferecem será transferido de volta para os outros homens, amigos, que, no final do dia, seguem sendo sua verdadeira prioridade.
Não há uma mudança real quando os próprios homens que se dizem aliados ainda operam dentro da mesma lógica que sempre os beneficiou. E não falo dos caricatos reacionários, mas daqueles que vestem bem a fantasia da desconstrução.
Eles sabem falar de feminismo com a entonação certa, têm referências decoradas, mas, no fim, nunca estão dispostos a perder o privilégio que a estrutura lhes entrega desde o nascimento. Há uma ironia amarga no fato de que, enquanto as palavras se transformam em mantras de libertação, elas se transmutam, quase imperceptivelmente, em instrumentos de dominação.
O que antes era um discurso explícito de opressão agora se esconde em entrelinhas de uma modernidade conveniada, onde o progresso é medido por aprovações superficiais e comportamentos que, apesar de sua nova roupagem, se alinham perfeitamente com os antigos modos de validação entre pares.
Essa validação, que se alimenta da insatisfação e do medo do outro, estabelece um ciclo vicioso: o homem que se vê compelido a reafirmar sua masculinidade recorre a gestos que, embora revestidos de modernidade, ecoam os mesmos mecanismos de exclusão e humilhação.
Eu não quero o seu respeito se ele só existe quando é conveniente. Se ele se dissolve no silêncio quando outro homem decide nos atacar. Se ele se dobra ao primeiro sinal de conflito entre a lealdade masculina e a justiça real.
A cumplicidade entre eles não é só um pacto. É um reflexo automático, um instinto aprendido desde a infância. Se protegem porque sabem que sem essa rede estariam vulneráveis. O respeito que pregam não é um princípio, mas uma moeda de troca: nos respeitam apenas até onde isso não compromete sua posição entre outros homens.
A camaradagem masculina é um organismo à parte, uma entidade autossuficiente que não precisa de justificativa para existir. Desde pequenos, aprendem isso, a se reconhecer e a se proteger, a se validar uns aos outros enquanto nos avaliam, nos categorizam e, quando não somos úteis, nos descartam.
Não importa quantos aprendam a repetir as palavras certas, quantos se apropriem dos discursos progressistas, quantos saibam dizer “eu te respeito” sem gaguejar — quando precisam escolher entre sua posição confortável e qualquer ato que exija ruptura, hesitam, recuam, permanecem exatamente onde estavam.
E quando um deles tenta ser diferente? O que acontece? Ele hesita. Ele quer manter o respeito dos outros. Então, ele se permite rir quando um amigo faz um comentário misógino, porque seria desconfortável demais repreendê-lo.
Ele vê uma mulher ser descredibilizada, tratada com condescendência, e sua boca se mantém fechada. Ele sabe que algo está errado, mas sua prioridade é não parecer “exagerado” diante dos outros homens.
Aí está o problema central: não é a misoginia escancarada que sustenta essa estrutura, mas a covardia disfarçada de neutralidade. O que mantém as mulheres presas na posição de serem sempre julgadas, sempre medidas, nunca plenamente aceitas, é essa cumplicidade silenciosa.
Eles não precisam nos atacar diretamente – basta permitir que os ataques aconteçam, basta escolher a conveniência do silêncio, basta continuar girando dentro do moinho que lhes oferece segurança.
E nós? Crescemos aprendendo que estamos sozinhas. Que se formos boas o suficiente, talvez sejamos escolhidas, aceitas, validadas. Mas nunca protegidas. Nunca defendidas. Se um de vocês nos trai, não há quem o confronte. Se nos atacam, não há quem interceda. Porque, no fim, o compromisso de vocês não é com a verdade — é com a preservação do grupo.
Eles justificam, relativizam, minimizam. E quando não conseguem mais negar, terceirizam a culpa: "ele é assim porque foi machucado", "ele tem dificuldade em demonstrar sentimentos", "ele só está perdido". Nunca é responsabilidade dele. Nunca é responsabilidade deles.
E nós? Nos tornamos descartáveis. Se nos indignamos, somos exageradas. Se cobramos coerência, somos inconvenientes. Se apontamos o óbvio, somos histéricas. Eles gostam de nos ver divididas, presas em disputas que alimentam suas narrativas de superioridade. Enquanto nos fragmentamos, vocês seguem intactos. Enquanto gastamos nossa energia nos justificando, eles avançam.
Mas hoje não. Hoje não vamos nos justificar. Não vamos medir palavras, suavizar verdades, amenizar a crítica. Porque a misoginia deles não está só nas ofensas explícitas, mas no respeito seletivo. No discurso progressista que nunca vira ação concreta. Na defesa tímida, ensaiada, que nunca chega ao ponto de confrontar outro homem de verdade.
E eles ainda contam com aquelas que aprenderam, desde cedo, que a sobrevivência depende de agradar. Que para ser aceita, para ser desejada, para ser protegida, ela precisa se dobrar. Se calar. Se apagar. Essas mulheres que gastam energia provando para eles que são diferentes de nós. Que não causam problemas. Que não incomodam. Que entendem "o lado deles".
Mas eu não as culpo. Elas fazem o que acham necessário para não serem engolidas vivas. Porque eles alimentam essa lógica, se sentem confortáveis nesse jogo, em que uma mulher disputa a atenção de um homem que nunca entrega nada de verdade.
Eles estimulam essa disputa e depois a usam como prova de que mulheres não se gostam, que são competitivas entre si por natureza. Mas não é natureza. É um jogo forçado. Uma regra imposta. E essa regra precisa ser quebrada.
A estrutura que mantém isso de pé não é sustentada por nós. O problema nunca foi a mulher que briga pela migalha, mas sim o homem que se vê confortável em distribuí-la. O problema é quem prende o interesse e usa isso como controle. Quem faz das relações um tabuleiro onde só um lado tem o direito de jogar.
E a mudança não virá pedindo migalhas maiores. A mudança só vem quando derrubamos a mesa, quando desprogramamos esse código viciado que coloca eles no centro e nos joga umas contra as outras.
Eles nos querem calmas, racionais, diplomáticas. Querem que aceitemos o mínimo e ainda sejamos gratas. Querem que confiemos em suas palavras, mesmo quando seus atos provam o contrário. Mas não vamos mais jogar esse jogo.
Não queremos um respeito que vacila, que hesita, que se apaga quando é posto à prova. Não queremos aliados que só são aliados até o momento em que precisam escolher entre a verdade e a lealdade masculina.
Em um mundo onde o discurso de emancipação se entrelaça com práticas que minam a própria ideia de liberdade, a resistência se torna imperativa. A recusa em aceitar o progresso como algo meramente superficial – uma espécie de ritual que consome as mulheres e transforma a revolução em espetáculo – é o primeiro passo rumo a uma ruptura genuína.
É necessário desmantelar as aparências e expor, sem dó nem remorso, as falácias que sustentam uma ordem que se disfarça de mudança. Esse desvelar não é feito com lágrimas ou lamentos, mas com a contundência de um raciocínio que, como um fio de aço, corta as amarras de um sistema que insiste em se perpetuar.
Esta não é apenas uma carta de indignação; é um apelo à consciência, um manifesto que clama por uma revisão profunda de todas as certezas que nos foram impostas. É a voz de quem se recusa a ser conivente com um mundo que, sob a égide do progresso, ainda se prende a práticas que ferem e diminuem.
Que cada palavra sirva de estopim para uma transformação que não se contenta com migalhas, mas exige a completa reconstrução de uma sociedade que, finalmente, reconheça o valor inestimável de uma liberdade verdadeira e intransigente.
Que o corte seja limpo, que a verdade seja crua e que a mudança seja inevitável.
— Uma voz que se recusa a silenciar. A revolução, se vier, será na ruptura, na recusa, na reconstrução. Nunca na concessão, nunca na espera.
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