Agora, a crise econômica que nos atravessa é, em sua raiz mais profunda, uma crise climática. O café, tão entranhado na identidade nacional e na estrutura da economia brasileira, está no centro desse turbilhão.
Nos últimos anos, eventos climáticos extremos têm se tornado mais frequentes e intensos. Em 2024, o Brasil enfrentou sua pior seca em mais de sete décadas, devastando plantações de café em regiões tradicionalmente produtivas, como São Paulo e Minas Gerais.
Além disso, geadas inesperadas comprometeram ainda mais a produção, resultando em uma queda significativa na oferta de grãos.
Essas adversidades climáticas não são exclusivas do Brasil. O Vietnã, segundo maior produtor mundial de café, também sofreu com condições climáticas adversas, contribuindo para uma redução global na oferta e, consequentemente, para o aumento dos preços.
Diante da escassez e da alta nos preços internacionais, os produtores brasileiros de café encontram no mercado externo uma oportunidade mais lucrativa. A valorização do dólar frente ao real torna as exportações ainda mais atrativas, levando muitos agricultores a priorizarem o mercado internacional.
Como resultado, o mercado interno recebe uma parcela menor da produção, e os preços domésticos disparam. Em dezembro de 2024, as principais torrefadoras do país anunciaram aumentos de até 30% nos preços ao consumidor.
Mas essa crise não se limita ao café. A indústria alimentícia, em busca de eficiência e lucro, tem promovido produtos como frutas sem sementes, que, embora convenientes, representam uma tentativa de monopolizar a reprodução das plantas e afastar os agricultores tradicionais do processo produtivo.
Essa prática não apenas ameaça a biodiversidade, mas também coloca nas mãos de poucas corporações o controle sobre a alimentação mundial.
O impacto da crise climática sobre a produção de alimentos encontra eco em uma estratégia de abastecimento que privilegia os circuitos financeiros em detrimento da segurança alimentar da população. O Brasil, celeiro do mundo, se vê refém de sua própria abundância.
Os mercados globais e sua dinâmica predatória não apenas impõem um modelo de produção excludente, mas redefinem nossa própria relação com o alimento. Frutas sem sementes são um dos símbolos desse sequestro do futuro – a semente, que carrega em si a potência da regeneração, é substituída por uma estrutura estéril, incapaz de dar continuidade à vida sem a intervenção do grande capital.
Esse fenômeno, estudado em profundidade por Vandana Shiva, é mais do que uma mera inovação agrícola: é um mecanismo de dependência, um monopólio biológico que priva os povos da autonomia alimentar.
Ao eliminar a possibilidade de reprodução natural, a indústria monopoliza a continuidade da vida vegetal, tornando os agricultores dependentes de tecnologias proprietárias. Cada semente carrega em si o futuro de uma planta, mas, quando sua reprodução é artificialmente interrompida, o que se perde não é apenas uma árvore—é a soberania alimentar de um povo.
A modernização prometida pelo avanço tecnológico na agricultura não se traduziu em uma distribuição equitativa dos benefícios. Pelo contrário, reforçou a lógica do controle, do envenenamento dos solos e da conversão da comida em ativo financeiro, ao invés de direito básico.
Paralelamente, observa-se uma proliferação de alimentos ultraprocessados — sucos em caixa, pães e massas industrializadas — que, apesar de baratos, são pobres em nutrientes. Esses produtos frequentemente substituem alimentos frescos da agricultura familiar, contribuindo para deficiências nutricionais e problemas de saúde na população de baixa renda.
A falta de educação nutricional agrava o quadro, levando a escolhas alimentares prejudiciais e ao aumento de distúrbios alimentares. A substituição do alimento vivo pelo alimento-máquina é uma violência sofisticada. Ela não se impõe pelo choque, mas pela erosão gradual da autonomia.
O trabalhador exaurido, sem tempo para preparar sua comida, se vê refém de um sistema que oferece soluções instantâneas, que enchem o estômago mas não nutrem. O ciclo se completa quando esse mesmo sistema penaliza aqueles que adoecem, convertendo-os em consumidores perpétuos de tratamentos que aliviam sintomas sem jamais tocar as causas.
O mercado impõe à população uma dieta baseada em produtos ultraprocessados, baratos, pobres em nutrientes e ricos em aditivos que apenas aprofundam a crise de saúde pública.
O sucateamento da agricultura familiar, substituída por um modelo industrial que privilegia a exportação, deixa como legado um abismo alimentar: de um lado, a elite que pode escolher como e quando se alimentar; do outro, milhões presos a um ciclo de consumo forçado, onde o tempo escasso e a renda insuficiente conduzem a escolhas compulsórias. Mas há uma perversidade maior nesse processo.
O encarecimento da alimentação e a precarização da saúde abrem espaço para novas formas de controle – da financeirização dos alimentos às soluções médicas elitizadas, como o uso irrestrito de medicamentos como o Ozempic entre aqueles que podem pagar pela ilusão de uma solução rápida.
Enquanto o pobre se vê impossibilitado de se alimentar de forma digna, a elite gerencia sua relação com a comida como um problema técnico, e não como um direito humano fundamental.
Há quem, em posição de liderança, proponha que a solução para a crise de preços seja simplesmente “não comprar comida”. Como se a fome fosse um capricho, como se o problema não fosse a estrutura, mas a demanda excessiva dos que têm cada vez menos.
O que essa retórica revela não é apenas indiferença, mas o esvaziamento do pensamento crítico. O gesto revolucionário, que um dia consistiu em tomar para si a responsabilidade pelo comum, hoje se dissolve em declarações performáticas, em análises superficiais que perpetuam a miséria enquanto simulam resistência.
Mas a fome não é apenas um fenômeno econômico – é um vetor de sujeição. A fome fabrica corpos dóceis, exaustos demais para insurgir-se, ocupados demais sobrevivendo para imaginar alternativas. Ela age na carne, dissolve o pensamento crítico e impõe uma letargia coletiva, uma captura silenciosa da potência vital. A fome não é um acidente: é um projeto, uma tecnologia de controle.
Dentro desse delírio organizado que chamamos de economia, nos tornamos reféns de uma temporalidade expropriada. O tempo da terra já não dita os ciclos da colheita; o tempo do corpo já não regula a fome; é o tempo do capital que governa, inscrevendo no tecido social um ritmo de escassez artificial, de crises planejadas, de precarização como norma.
A financeirização do alimento não apenas nos priva do direito de comer, mas do direito de existir fora dessa lógica.
E o que resta quando até a biologia se torna um campo de acumulação? A elite se autorregula com medicamentos de luxo, enquanto o resto da população é convencido a metabolizar sua própria miséria, a internalizar sua fome como fracasso individual, como culpa.
A crise não apenas devora os corpos – ela devora os sonhos, sequestra o desejo, fragmenta qualquer possibilidade de existência.
Diante disso, não basta reformar, amenizar, remediar. É preciso um desvio. Não há espaço para conciliação quando a própria estrutura devora. A fome não é só a falta de comida, mas a falta de futuro, a interdição do possível. Contra esse deserto programado, não há outra saída senão forjar novas paisagens: insubmissas, insuportáveis para o capital, pulsantes de uma vitalidade que não se deixe capturar.
A agricultura regenerativa, com técnicas como agrofloresta e variedades adaptadas ao clima, pode aumentar a resiliência produtiva. A diversificação da matriz energética, impulsionando bioenergia, solar e eólica descentralizadas, reduziria a vulnerabilidade ao mercado externo. Mecanismos de precificação de carbono e regulação financeira devem evitar a especulação sobre alimentos e estimular cadeias produtivas sustentáveis.
Mais que necessidade, essa transformação é uma oportunidade: o Brasil tem os recursos e o conhecimento para liderar um modelo econômico equilibrado entre produtividade e resiliência climática. A escolha é entre agir agora ou ser forçado a enfrentar crises ainda mais severas no futuro.
A questão não é apenas quem paga o preço do mundo que nos impõem – mas se ainda aceitaremos pagá-lo.
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