Este texto é um convite para compreender como chegamos a esse ponto, por que a romantização das inteligências artificiais acelera esse colapso e por que a antropologia xenofeminista pode ser uma ferramenta essencial para corrigir esse curso catastrófico.
Para entender a obscenidade da existência de um trilionário, precisamos voltar um pouco no tempo. Durante a Revolução Industrial, a acumulação de capital explodiu com o crescimento de corporações e monopólios. A crise de 1929 foi um aviso do que acontece quando o mercado se descontrola sem regulamentação adequada, levando a um colapso global. Mas o que fizemos? Criamos mecanismos para segurar a economia por um tempo, mas nunca resolvemos a raiz do problema: a acumulação massiva de riqueza.
Os anos 1970 trouxeram outra reviravolta com a ascensão do neoliberalismo, que desmantelou proteções sociais e fortaleceu a ideia de que o mercado deveria se autorregular. Isso resultou em crises menos faladas, mas devastadoras, como a crise da dívida latino-americana dos anos 1980, que jogou países inteiros na miséria e os tornou dependentes do FMI e do Banco Mundial. Da mesma forma, a crise financeira asiática de 1997 colapsou economias emergentes e forçou intervenções brutais que beneficiaram apenas investidores estrangeiros.
Quem realmente pagou por essas crises? As populações indígenas da América Latina, que perderam territórios para grandes projetos extrativistas sob justificativa de "recuperação econômica". Trabalhadores rurais africanos, que viram o custo de vida disparar enquanto empresas estrangeiras compravam terras a preços irrisórios. Comunidades asiáticas que sofreram com o desmantelamento de políticas públicas enquanto seus governos adotavam medidas de austeridade impostas por organismos financeiros internacionais.
A ascensão das big techs e a transformação da economia em um cassino global culminaram na explosão da desigualdade que vemos hoje. Elon Musk pode ser o primeiro trilionário, mas não será o único. À medida que essas megacorporações crescem e se fundem, os bilionários se tornam dinastias corporativas que dominam o mundo, enquanto o trabalhador comum luta para manter-se vivo.
A inteligência artificial, ao contrário do que se esperava, não democratizou o conhecimento nem trouxe maior justiça econômica. Pelo contrário, está sendo usada como uma ferramenta de acumulação de riqueza nas mãos dos já ultra-ricos. O setor artístico é um dos mais afetados, com grandes empresas substituindo mão de obra criativa por IA generativa, que lucra com conteúdo produzido a partir de bancos de dados exploratórios. Artistas, escritores e profissionais criativos se veem cada vez mais pressionados a competir com algoritmos que reproduzem sua própria criação sem remuneração justa.
O impacto da IA na precarização do trabalho vai além do setor criativo. Serviços antes realizados por humanos, como suporte ao cliente, tradução, revisão de textos e até diagnósticos médicos, estão sendo substituídos por modelos de IA que reduzem drasticamente os custos para empresas, mas destroem postos de trabalho e desvalorizam a expertise profissional. Em vez de libertar a humanidade de tarefas exaustivas, a IA está sendo usada para aumentar a exploração laboral e transferir riqueza para as megacorporações que controlam essa tecnologia.
Além disso, a expansão dessas tecnologias não é neutra: ela avança destruindo modos de vida inteiros. Povos tradicionais que dependem da transmissão oral de conhecimento veem suas histórias e práticas serem transformadas em bancos de dados para empresas que lucram sem sequer reconhecer suas contribuições. Línguas indígenas são absorvidas por modelos linguísticos de IA e usadas para fins comerciais sem qualquer reparação para as comunidades que as preservam.
Outro aspecto alarmante da massificação da IA é seu uso para monitoramento de massas. Sistemas de vigilância impulsionados por IA estão sendo implementados por governos autoritários e empresas privadas para rastrear e controlar populações. O reconhecimento facial, os algoritmos preditivos e a mineração de dados pessoais criam um cenário distópico onde cada movimento é registrado, analisado e potencialmente utilizado para repressão social. O que antes era ficção científica agora se torna um instrumento de controle político e econômico.
Aí entra o xenofeminismo, um conceito que precisa urgentemente ser revisitado. O xenofeminismo propõe uma abordagem materialista para o uso da tecnologia como ferramenta de emancipação, e não de opressão. Se as corporações dominam a IA, precisamos de um movimento que a reivindique para fins sociais, redistributivos e coletivos. Mas isso exige uma compreensão profunda da relação entre economia, tecnologia e poder.
A xenofeminista Helen Hester argumenta que não basta apenas criticar as tecnologias emergentes, é preciso reapropriá-las para criar novos espaços de justiça social e econômica. Isso significa que movimentos de trabalhadores precisam ser fortalecidos, que tecnologias não podem ser monopolizadas, e que as novas gerações devem aprender a questionar o uso que se faz da IA e das plataformas digitais.
O xenofeminismo também propõe uma reconexão com a antropologia da resistência, estudando como culturas historicamente marginalizadas desenvolveram formas de lutar contra a exploração e o domínio tecnológico. As estratégias de resistência dos povos indígenas, das comunidades negras e das populações periféricas ao redor do mundo devem ser reconhecidas como alternativas válidas para enfrentar o monopólio das megacorporações e das elites tecnológicas.
A história econômica é cíclica, mas isso não significa que devemos aceitá-la como destino inevitável. O surgimento do primeiro trilionário não é um marco de progresso, é um símbolo da falha sistêmica de um modelo econômico que concentra riqueza enquanto destrói a vida da maioria.
A romantização da IA e da automação como soluções para o futuro é um veneno disfarçado de cura. Precisamos urgentemente questionar quem controla essas tecnologias, a quem elas servem e como podemos ressignificá-las para um futuro que não seja apenas um reflexo das desigualdades do passado.
Se quisermos evitar um colapso ainda maior, devemos recuperar a história perdida das crises econômicas, expor os erros que nos trouxeram até aqui e buscar alternativas que priorizem as pessoas, e não os trilionários.
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