O Brasil, em teoria, é uma república — um Estado em que o poder emana do povo e deve ser exercido em seu benefício. A lógica republicana pressupõe transparência, alternância no poder e compromisso com o bem comum.
No entanto, a realidade brasileira desafia essa definição, revelando dinâmicas de poder que se perpetuam independentemente do discurso progressista que, constitucionalmente, deveria orientar a administração pública.
A política é um organismo vivo, moldado por ciclos de poder, rupturas e continuidades. Em Sobral, esse organismo parece atravessar uma fase crítica, marcada não por uma mudança de gestão, em si, mas por questões estruturais que merecem análise mais profunda.
Após quase três décadas sob a influência do clã Ferreira Gomes, a derrota nas eleições de 2024 poderia ter sinalizado uma renovação política em Sobral. Contudo, a transição revelou desafios que vão além da simples alternância de poder, evidenciando questões estruturais que permeiam a política local: a descontinuidade administrativa, o apego patrimonialista à máquina pública e a fragilidade institucional que transforma a gestão em um jogo de apagar rastros.
O problema não é apenas quem governa, mas como se governa. A recente proposta de reforma administrativa na Câmara Municipal, cuja tramitação tem se mostrado mais lenta do que o esperado, é um ponto de partida para refletirmos sobre o funcionamento das engrenagens institucionais e o papel das lideranças políticas nesse processo.
O que justifica a demora na aprovação da reforma administrativa? Trata-se de um entrave técnico, de falhas na articulação política, ou de uma resistência que reflete interesses mais enraizados? Essas perguntas não visam acusar, mas compreender o que está em jogo quando se discute a estrutura organizacional da máquina pública.
Reformas administrativas, por definição, deveriam ter como objetivo a eficiência, a transparência e o aprimoramento da gestão pública. Contudo, quando se tornam reféns de disputas de bastidores ou da falta de clareza sobre suas finalidades, acabam por perpetuar problemas que pretendiam resolver.
A vitória de Oscar Rodrigues, do União Brasil, simbolizou um desejo de mudança. No entanto, a falta de transparência na reativação de plataformas institucionais no Instagram e o desativamento de perfis oficiais de órgãos culturais, como o da Casa da Cultura, demonstram que o desafio maior não está apenas em assumir o poder, mas em romper com o ciclo de descontinuidade que há décadas prejudica a governança da cidade.
O impacto dessa desorganização se reflete, por exemplo, na dificuldade de acesso a informações sobre eventos culturais e na gestão do Cinema Falb Rangel, abrigado pela Casa da Cultura. Esse descompasso expõe um padrão nacional: a política municipal ainda é tratada como um feudo pessoal, e as alternâncias no poder são mais marcadas por ajustes de contas do que por compromissos com a continuidade administrativa.
O que está por trás dessa escolha? Seria uma tentativa de reconfiguração da identidade institucional ou uma demonstração da dificuldade em lidar com o legado de gestões anteriores? O que deveria ser uma política pública contínua e acessível se transforma, mais uma vez, em um campo de disputas simbólicas e práticas, prejudicando a memória cultural e o direito da população à informação.
Projetos são interrompidos, memórias institucionais silenciadas, e a população paga o preço da instabilidade. O que deveria ser um momento de fortalecimento da democracia torna-se, na prática, uma troca de donos em um jogo privado, apesar de ser preciso reconhecer que a administração recém-empossada ainda enfrenta desafios típicos de início de mandato.
Se há algo que o último mandato de Ivo Gomes nos ensinou, é que governar Sobral como um caudilho de província não é exatamente uma estratégia sustentável. Entre arroubos de autoritarismo disfarçados de eficiência e uma centralização de poder digna de manuais antiquados de liderança, o resultado foi o colapso do próprio grupo político que ele tentou manter sob controle férreo.
Isso nos leva a uma questão ainda mais profunda: o papel das oligarquias políticas e a dificuldade de renovação das lideranças. A questão central não é a culpa isolada de uma gestão ou de outra, mas sim uma lógica política que se repete: cada novo governo age como se tivesse o direito de passar o passado pra baixo do tapete e tratar da cidade como uma página em branco a ser reescrita a cada quatro anos.
Essa disputa rasteira revela uma dinâmica ainda mais profunda: o poder local é frequentemente exercido como uma extensão de interesses de grupos políticos e familiares. O Ceará, historicamente, é marcado por dinastias políticas que se perpetuam por meio de redes de influência, capital político acumulado e uma relação quase patrimonialista com o poder público.
O recente caso de Antônio Martins, reeleito prefeito em Cariré, enquanto sua esposa, cunhado e sobrinho também assumem prefeituras em cidades vizinhas, ilustra bem como a política cearense opera em ciclos fechados, nos quais a alternância no poder raramente significa renovação real.
Esse cenário nos leva a questionar se estamos diante de uma crise de representatividade ou, mais radicalmente, de uma crise de imaginação política, incapaz de romper com modelos arcaicos de gestão e liderança. Essa crise de liderança também se manifesta na forma como lideranças femininas são instrumentalizadas no jogo político.
A trajetória de Izolda Cela é um exemplo emblemático. Ex-governadora do Ceará e secretária-executiva do Ministério da Educação, Izolda foi lançada como candidata à Prefeitura de Sobral com o endosso de Ivo e Cid Gomes.
Apesar de sua competência técnica e experiência administrativa, sua candidatura enfrentou desafios que transcendem o campo eleitoral: ataques misóginos, falta de suporte genuíno de seus aliados e uma estrutura de poder que pouco se importa com a autonomia das mulheres em cargos de liderança, o que a levou à derrota nas urnas.
Dentro desse contexto, a trajetória de Izolda Cela se destaca não apenas pelo seu papel enquanto gestora pública, mas pelo simbolismo de sua decisão de se afastar da política institucional após a disputa pela Prefeitura de Sobral. Após sua exoneração do MEC em 2024, Izolda recusou convites para retornar ao ministério e para assumir uma secretaria em Fortaleza, optando por retomar sua carreira como professora na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).
Izolda representa um caso emblemático de como lideranças femininas, mesmo com competência técnica e experiência administrativa, ainda enfrentam desafios adicionais em um ambiente político hegemonicamente masculino e distante das bases populares.
Sua recusa em continuar ocupando cargos de destaque pode ser interpretada não como um gesto de desistência, mas como uma crítica silenciosa a uma estrutura que, muitas vezes, instrumentaliza mulheres como figuras de transição ou "bois de piranha" em um sistema que permanece resistente a mudanças reais.
Esse termo, "boi de piranha", não é usado aqui de forma leviana. Ele simboliza o papel atribuído a muitas lideranças que, ao serem colocadas na linha de frente, acabam absorvendo o desgaste político para proteger interesses mais amplos de grupos que operam nos bastidores.
No caso de Izolda, essa metáfora se torna ainda mais potente quando pensamos na fragilidade do apoio que recebeu de figuras tradicionais da política cearense, o que evidencia o quanto o sistema político ainda é incapaz de sustentar projetos que desafiem suas estruturas internas de poder.
A metáfora do "boi de piranha" — o sacrifício de um para salvar o coletivo — ilustra dolorosamente o papel que Izolda e tantas outras mulheres ocuparam na política brasileira, sendo utilizadas para absorver crises enquanto a estrutura patriarcal permanece intocada.
Esse padrão não se limita a Sobral. Dilma Rousseff, primeira mulher a presidir o Brasil, enfrentou um processo de impeachment controverso, enquanto Manuela D'Ávila e Marina Silva, por exemplo, apesar de suas proeminências, enfrentaram desafios significativos em suas campanhas.
Esses casos mostram que mulheres são frequentemente alçadas a posições de destaque não para liderar de forma autônoma, mas para servir a agendas políticas que perpetuam a hegemonia masculina. Quando deixam de ser convenientes, são rapidamente descartadas.
A crise política de Sobral, portanto, é um microcosmo de um problema maior. De um lado, partidos e lideranças progressistas falham em se reconectar com as demandas populares, abrindo espaço para grupos populistas, e até conservadores, que, sob a promessa de renovação, reproduzem os mesmos vícios de seus antecessores. Do outro, a política brasileira continua instrumentalizando minorias e lideranças femininas, sem lhes conceder autonomia real.
O que vivemos agora não é uma simples alternância de poder. É um retrato do Brasil, onde o compromisso público é substituído por disputas mesquinhas, e o poder, em vez de ser um instrumento de transformação social, é tratado como um troféu a ser conquistado — e, quando conveniente, apagado da história.
Diante de tudo isso, a pergunta que fica é: como romper com esse ciclo? Não há respostas simples, mas alguns caminhos podem ser apontados. O primeiro é a valorização da continuidade institucional, independentemente das mudanças de gestão.
Políticas públicas eficazes não podem ser tratadas como propriedade de uma administração específica, mas como construções coletivas que pertencem à sociedade. Isso implica repensar práticas como o silenciamento de perfis institucionais e a desarticulação de programas culturais, que deveriam ser mantidos e aprimorados, e não descartados a cada nova gestão.
O segundo caminho passa pela reformulação do próprio conceito de liderança política. É preciso ir além da lógica das oligarquias e abrir espaço para novas vozes, que tragam perspectivas diferentes e estejam conectadas com as demandas reais da população.
Isso não significa apenas renovar rostos, mas transformar a forma como a política é feita, valorizando o diálogo, a transparência e a participação cidadã. Por fim, é fundamental que a sociedade civil assuma um papel mais ativo nesse processo.
O debate sobre quaisquer reformas administrativas em Sobral, por exemplo, não pode se limitar aos corredores da Câmara Municipal. Ele deve envolver a população, os servidores públicos e os diversos setores da sociedade, que têm o direito de compreender, questionar e contribuir para a construção de uma gestão pública mais eficiente e democrática.
Enfrentamos, em todo o mundo, não só em Sobral ou no Brasil, o desafio de superar uma crise de lideranças que é, antes de tudo, uma crise de visão sobre o que significa governar. O futuro não será construído com as ferramentas do passado.
É imperativo que haja uma reflexão crítica sobre essas dinâmicas. A inclusão na política não deve ser meramente simbólica ou utilitária, e a alternância no poder só será, de fato, um avanço democrático quando for acompanhada da capacidade de construir coletivamente, respeitando o passado, enfrentando o presente e projetando um futuro para além dos ciclos viciados do poder.
O mínimo que se espera daqui para frente, independente de quem esteja no comando, é que o modelo de gestão não se baseie na figura de um líder messiânico que acredita ser a própria encarnação da administração pública. Afinal, Sobral não é um feudo — embora, às vezes, pareça que todos tenham esquecido disso.
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