Sexta, 14 de Fevereiro de 2025 20:46
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Brasil Saúde Pública

A Falácia Moral da Expansão Hospitalar: A Medicina Como Farsa de Cuidado e Bode Expiatório de Super-Ricos

De que adianta erguermos hospitais como monumentos de uma saúde pública que agoniza se, na base, falta aquilo que dá vida ao sistema: profissionais qualificados, éticos e vocacionados?

29/01/2025 07h39
Por: Clara Santos
https://images.app.goo.gl/CECYGYRkdL7eFNUW6
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Em um país onde o número de cursos de medicina cresce exponencialmente a cada ano e onde médicos se acumulam nas capitais como moscas em volta do poder, a falta de uma instância regulatória que avalie a aptidão e a ética dos profissionais é um escândalo. Por que não existe, afinal, uma OAB para a medicina? Esse questionamento é mais que pertinente; é urgente.

Formamos milhares de médicos anualmente, mas não há um exame de ordem que teste sua competência técnica e, mais importante, sua aptidão moral e vocacional para lidar com vidas humanas.

O resultado? Uma classe profissional que, em boa parte, atua como um simulacro do cuidado, mas cujo compromisso real está com sua própria ostentação. Nas universidades, o cenário é igualmente desolador: estudantes mais interessados em promover festas de atlética e eventos sociais do que em humanizar sua prática e enfrentar o abismo de um sistema de saúde em colapso.

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O argumento contrário à criação de um "exame de ordem médica" geralmente se baseia na premissa de que a regulação já existe por meio do Conselho Federal de Medicina (CFM) e seus conselhos regionais.

Contudo, o CFM, muitas vezes, limita-se a questões administrativas ou atua de maneira tímida diante de escândalos envolvendo a classe. Além disso, a entrada irrestrita de novos profissionais no mercado – sem qualquer avaliação padronizada de suas competências – compromete a qualidade dos serviços de saúde.

De que adianta formar mais médicos, como tem ocorrido nos últimos anos, se muitos não possuem preparo técnico ou emocional para lidar com as complexidades da profissão?
Uma pesquisa de 2023 realizada pela Fiocruz revelou que 40% dos médicos recém-formados no Brasil relatam se sentir inseguros para lidar com situações críticas, como emergências ou diagnósticos complexos. Essa insegurança, quando não acompanhada de supervisão ou atualização constante, transforma-se em risco real para os pacientes.

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A concentração de profissionais nas grandes metrópoles evidencia uma das maiores desigualdades do sistema. Segundo dados de 2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM), o Brasil possui 575.930 médicos, dos quais 330.278 atuam nas capitais, que abrigam menos de um quarto da população do país. Isso significa que as capitais têm quase quatro vezes mais médicos por habitante do que o interior.

Esses médicos não apenas monopolizam os centros urbanos como, muitas vezes, superfaturam consultas, alegam indisponibilidade para atendimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e ainda se escoram na desculpa da “fila de espera”. Mas será que essa fila é apenas um reflexo de um sistema sobrecarregado, ou também reflete a má vontade e a avareza de quem ocupa as pontas do processo? 

É até difícil acreditar que, em um país com tantas mãos disponíveis, tantas mentes formadas, a saúde ainda seja um privilégio restrito a quem pode pagar por ela.
A construção de hospitais e unidades de saúde tem sido a bandeira política de muitos gestores. No entanto, esses hospitais frequentemente se tornam simulacros de cuidado.

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Reportagens investigativas revelam que, em 2020, diversas obras de hospitais públicos inauguradas no Brasil estavam inoperantes devido à falta de profissionais e insumos básicos. Um caso emblemático foi o hospital de campanha proposto em Itajaí, Santa Catarina, durante a pandemia de COVID-19.

Em abril de 2020, o governo catarinense anunciou a instalação de um hospital de campanha em Itajaí, com previsão de 100 leitos e um custo estimado de R$ 76 milhões. A contratação previa a montagem do hospital, fornecimento de equipamentos, insumos e a disponibilização de 450 profissionais de diversas áreas.

Contudo, a iniciativa foi alvo de críticas e denúncias de possíveis irregularidades na licitação. Parlamentares questionaram a lisura do processo, apontando ligações entre os responsáveis pela empresa contratada e membros do governo estadual. Diante da controvérsia, o governo recuou e, em junho de 2020, desistiu da construção dos hospitais de campanha, optando por investir em unidades de saúde já existentes. 

Casos de superfaturamento de consultas, recusa em atender pelo SUS e práticas que exploram a dor e o desespero dos pacientes são a evidência mais clara dessa crise. Segundo um levantamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entre 2021 e 2023, houve um aumento de 32% nas denúncias contra profissionais que se recusaram a atender pelo sistema público ou impuseram barreiras para pacientes de planos de saúde.

Esse descompasso entre infraestrutura e qualidade humana reflete a ausência de um planejamento estratégico para a saúde pública. Não adianta criar leitos se os profissionais que deveriam ocupá-los estão mais preocupados em acumular capital do que em prestar atendimento digno e eficiente. Como resultado, hospitais se tornam palcos de práticas negligentes, onde vidas são tratadas como números, e gestores lucram enquanto pacientes morrem na fila.

Outro aspecto central desse debate é o processo de formação dos futuros médicos. Universidades, sobretudo as privadas, têm priorizado a quantidade em detrimento da qualidade. Dados do CFM mostram que, atualmente, existem 412 cursos de medicina no Brasil, o maior número do mundo.

Muitos desses cursos foram abertos sem estrutura adequada, resultando em profissionais mal preparados para enfrentar a realidade do mercado. O ambiente acadêmico, em vez de fomentar o compromisso com a saúde coletiva, frequentemente promove um antro elitista, onde a humanização é relegada a segundo plano.

Pesquisas da Revista Brasileira de Educação Médica indicam que 45% dos estudantes de medicina relatam sentir que a formação universitária não os prepara para lidar com a realidade do SUS. Pior ainda, muitos cursos negligenciam disciplinas voltadas à saúde pública, reforçando a ideia de que o setor privado é a única saída viável para os recém-formados.

Enquanto isso, festas de atlética, competições esportivas e eventos sociais monopolizam o tempo e o interesse de grande parte dos estudantes. Esse comportamento evidencia uma desconexão brutal entre a vida universitária e as demandas da sociedade. Afinal, que tipo de médico estamos formando? Alguém preocupado com o bem-estar alheio ou apenas com sua própria ascensão social?

Onde está o compromisso com o legado de Drauzio Varella, que desbravou os corredores sombrios do sistema prisional para humanizar o cuidado? Onde está a coerência da Sociedade Brasileira de Medicina (SBM) em fiscalizar a qualidade dos seus membros e, acima de tudo, exigir um compromisso mínimo com a saúde pública?

Médicos que deveriam ser os pilares da saúde se tornam empresários de suas próprias clínicas, administradores de uma saúde privatizada, e gestores de privilégios que mantêm o povo na lama enquanto eles voam em seus aviões particulares.

E os hospitais que tanto se constrói? São, em muitos casos, simulacros de cuidado, encenações de uma saúde pública que só existe nos discursos de campanha e nas placas de inauguração. Administradores enchem os bolsos enquanto os corredores das emergências se enchem de pacientes.

O que adianta construir mais leitos, se os profissionais que deveriam ocupá-los com dedicação e competência estão mais preocupados em tirar selfies em viagens internacionais e revoadas caras? A discussão aqui não é apenas técnica; é moral. Estamos diante de um colapso ético, onde a medicina, uma profissão outrora pautada pela vocação e pelo compromisso com a vida, se transformou em um clube elitista, fechado e autocentrado.

Enquanto isso, o interior do Brasil, as periferias, e até mesmo as zonas urbanas mais vulneráveis, são relegadas ao esquecimento. Quem paga essa conta? O povo que morre na fila, o povo que não tem alternativa a não ser assistir à falência de um sistema que nunca foi realmente para ele.

O debate sobre a criação de uma "OAB da Medicina" precisa ser levado a sério. É urgente que se estabeleçam critérios rigorosos para avaliar não apenas a competência técnica dos médicos, mas também sua ética e compromisso com a saúde pública. Além disso, é essencial repensar o modelo de formação médica, priorizando disciplinas voltadas para a humanização e para o fortalecimento do SUS.

O Brasil não precisa de mais hospitais vazios. O que precisamos é de profissionais que pisem na lama, que estejam dispostos a enfrentar as mazelas do sistema com coragem e ética. Não podemos aceitar que a saúde continue sendo um privilégio de poucos enquanto a maioria agoniza.

O colapso ético da medicina brasileira só será revertido quando entendermos que cuidar de vidas é mais do que uma profissão: é um chamado moral. O Brasil precisa urgentemente repensar suas prioridades na área da saúde.

De nada adianta construir hospitais, aumentar a quantidade de leitos ou formar médicos em ritmo acelerado se não houver investimento real na qualidade e na ética da formação profissional. A saúde pública não pode ser tratada como um mercado de consumo, onde apenas os mais ricos têm acesso ao que há de melhor, enquanto os demais se conformam com o mínimo – ou, muitas vezes, com nada.

É hora de colocar a classe médica contra a parede. Onde está a atitude que tanto cobramos dos políticos, mas que também deve ser exigida de quem decide, todos os dias, entre salvar vidas ou ostentar privilégios?

De que adianta mais prédios, mais tecnologia, mais cursos de medicina, se os pilares morais que sustentam essa estrutura estão podres? A saúde pública não precisa de simulacros; precisa de ação concreta, compromisso real, e coragem para pisar na lama ao invés de flanar em seus tronos dourados.

A criação de uma instância regulatória para a medicina, similar à OAB, seria um passo importante para restabelecer a confiança na profissão e garantir que os profissionais estejam realmente aptos a cuidar de vidas humanas.

Mais do que isso, é essencial promover uma mudança cultural dentro da própria classe médica: valorizar a humanização, o compromisso social e a responsabilidade ética como pilares da prática médica.

Porque, no fim, saúde não é luxo, não é privilégio, não é mercadoria. Saúde é direito. E enquanto continuarmos a ignorar essa verdade, o sistema de saúde no Brasil seguirá como um simulacro de cuidado – belo por fora, mas vazio por dentro.

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