O Teatro São João, uma joia de arquitetura e história, erguido em 1880, ainda se mantém de pé como testemunha silenciosa de um passado cultural que lutava por relevância e identidade. Mas, ironicamente, ele está mais fechado do que aberto, aprisionado não pela falta de arte, mas pelas correntes da burocracia.
Uma estrutura impecável, que deveria estar lotada de vozes, expressões e histórias, definha no abandono funcional enquanto as companhias locais e os artistas regionais lutam por espaços de visibilidade.
O São João é mais do que um teatro: ele é um símbolo de como a cultura é tratada como supérflua em Sobral, no Ceará, no Brasil. E o que isso tem a ver com cinema? Tudo. Porque o cinema, antes de ser cinema, foi teatro.
Foi palco, foi, e é, expressão. Foi grito silencioso no preto e branco mudo de seus primórdios. As câmeras apenas capturaram o que o teatro ensinou: a intensidade de um olhar, a poesia de um movimento, a potência de um corpo que conta histórias sem precisar de palavras.
No entanto, ignoramos esse elo. Falamos de cinema como algo separado, desconectado de suas raízes teatrais. O Brasil, que tem em sua Política Nacional do Cinema a promessa de proteger e ampliar o acesso ao audiovisual, permite que essa promessa mofe nas gavetas dos burocratas.
Enquanto isso, Hollywood segue ocupando cada canto de nossas telas, esmagando qualquer tentativa de afirmação cultural com um cinema mastigado, vazio e cuidadosamente projetado para agradar a todos, sem dizer nada a ninguém.
E o reflexo disso em Sobral é brutal. Temos um teatro fechado e um cinema sufocado. O Cine Falb Rangel, que deveria ser um ponto de encontro para o cinema nacional e regional, luta para sobreviver à indiferença.
Poucos sabem que o São João e o Falb Rangel têm uma ligação visceral: o primeiro foi palco do que viria a ser o cinema – a performance humana em sua forma mais pura –, enquanto o segundo deveria ser a continuação dessa narrativa, um espaço de resistência para o cinema brasileiro. Mas o que vemos é um ciclo de abandono e desprezo que reflete, em escala local, o que acontece em todo o país.
A verdade é que só falamos de cinema nacional quando ele ganha um Oscar, um Urso de Ouro, ou qualquer outra premiação que venha carimbada por um aval estrangeiro. Fernanda Torres, brilhante e irrepreensível, teve que carregar a glória do cinema nacional para o exterior, com um globo de ouro, para que o Brasil finalmente olhasse para si mesmo e percebesse o talento que sempre esteve aqui.
Mas por que precisamos dessa validação externa? Por que continuamos a tratar nossa arte como inferior, enquanto veneramos um cinema estrangeiro que, muitas vezes, nem sequer tenta entender quem somos?
Essa síndrome de vira-lata cultural não é nova. Ela já foi denunciada por nomes como Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e tantos outros que sabiam que o cinema brasileiro incomoda porque é vivo, cru e subversivo. É um cinema que escancara as contradições do país, que não se limita a contar histórias agradáveis. Mas, mesmo assim, ele é tratado como artigo de luxo. Poucos assistem, poucos conhecem, e, pior, poucos se importam.
O problema começa nas escolas. Desde 2014, existe uma lei que obriga a exibição de filmes nacionais na educação básica, mas quantas escolas cumprem isso? Quantos jovens sobralenses já assistiram a clássicos como Deus e o Diabo na Terra do Sol ou O Pagador de Promessas?
Em vez disso, nossos alunos são alimentados com blockbusters estrangeiros que nada dizem sobre nossa realidade. O cinema, que poderia ser uma ferramenta poderosa de formação de consciência crítica, é relegado à categoria de entretenimento descartável.
E a produção regional? Sobral, com toda a sua efervescência cultural, poderia ser um polo de cinema independente, mas onde estão os incentivos? Os editais aparecem como miragens e desaparecem antes que os artistas possam alcançá-los. Festivais regionais são organizados com muito esforço e pouco apoio, enquanto o poder público finge que cultura é algo que se resolve sozinho.
Se queremos valorizar o cinema nacional, precisamos começar derrubando estruturas. E isso inclui abrir as portas do Teatro São João, não apenas para o teatro, mas para a produção audiovisual, para encontros, para debates.
O teatro é a origem do cinema, e ignorar isso é amputar parte de nossa identidade artística. Mais do que isso, precisamos de políticas que saiam do papel. Cotas para filmes nacionais nos cinemas e plataformas de streaming precisam ser impostas e fiscalizadas com rigor. E não apenas no eixo Rio-São Paulo, mas em todas as regiões do Brasil.
O cinema brasileiro não precisa ser aceito. Ele precisa ser imposto. Ele é um patrimônio, uma arma de resistência, uma forma de dizer ao mundo – e a nós mesmos – que existimos, que temos histórias para contar e que essas histórias importam. Se continuarmos tratando-o como um apêndice da cultura global, corremos o risco de perder mais do que o cinema. Perdemos quem somos.
E Sobral, com seu Teatro São João e o Cine Falb Rangel, poderia estar na vanguarda dessa luta. Mas, para isso, é preciso abrir as portas – físicas e metafóricas. É preciso sair da apatia e exigir que nossas histórias tenham o espaço que merecem. Porque, no final das contas, valorizar o cinema nacional é, antes de tudo, valorizar a nós mesmos.
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