Hoje celebra-se o dia do cinema brasileiro. A data faz uma alusão à primeira filmagem realizada por aqui, que se trata de um vídeo da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, em 1898, gravado pelo italiano Afonso Segreto, que havia acabado de desembarcar no Brasil, trazendo consigo alguns curtas feitos por ele mesmo, que seriam exibidos. Apesar de haver registros da data da filmagem, como o jornal Gazeta de Notícias que noticiou o ocorrido no dia seguinte, ela foi perdida com o passar do tempo.
Desde então, são mais de 126 anos que nosso país produz obras que evidenciam a pluralidade sociocultural do Brasil. Nessa lista, trago alguns filmes que passeiam em momentos-chave da história de nosso audiovisual para você assistir.
Considerado o melhor filme brasileiro de todos os tempos pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abbracine), Limite foi realizado por Mário Peixoto, brasileiro nascido na Belgica, contando a história de três pessoas que estão em um barco à deriva, refletindo sobre o passado e completamente sem esperanças, daí o título da obra. Entre tantas histórias que cercam a mística em torno do lançamento (incluindo brigas durante as exibições), Limite ficou perdido por mais de 40 anos, sendo recuperado e restaurado apenas nos anos 1970.
Possuindo um caráter experimental, o filme pode não conversar com a linguagem do cinema que conhecemos atualmente, mas vale a pena ver pelo menos uma vez para se ter o vislumbre de uma parte importante do cinema brasileiro.
O primeiro e único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Anselmo Duarte, ator que era estrela nos anos 50, resolveu se aventurar na direção e fez um filme que marcou sua época.
Baseado na peça de Dias Gomes, O Pagador de Promessas narra a tentativa de Zé do Burro (Leonardo Villar) de cumprir a promessa que fez após o grave acidente envolvendo seu asno de estimação. O que era para ser algo simples, acaba tornando-se uma situação que movimenta toda a cidade de Salvador, uma vez que motivado por crenças pessoais, o padre da Igreja de Santa Bárbara não o deixa cumprir a promessa.
A narrativa apresenta diversos temas que até hoje são discutidos em nossa sociedade, como intolerância religiosa, o sensacionalismo da mídia, a preservação moral das instituições religiosas e políticas. Vale dizer que o filme recebeu um remake em formato de minissérie em 1988, produzido pela Rede Globo de Televisão.
O filme mais conhecido do Cinema Novo, movimento cinematográfico de grande importância no Brasil. Dirigido por Glauber Rocha, um dos cineastas mais celebrados do país, a trama narra a trajetória do vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) que após assassinar o coronel Moraes, parte com sua esposa em uma viagem que o levará até o culto de Sebastião (Lídio Silva), o bando do cangaceiro Corisco (Othon Bastos) e o jagunço Antônio das Mortes (Maurício do Valle).
Possuindo a ‘’estética da fome’’ proposta por Glauber no movimento, o filme fala sobre a devoção a uma fé cega em função do desespero em meio a um sertão hostil e desesperançoso, e possui uma das frases mais marcantes do cinema nacional (O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão). Existe um filme que funciona como uma sequência para ele, intitulado de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), que traz o retorno do personagem Antônio das Mortes.
O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência.
Foi com este monólogo sombrio e misterioso que o cinema nacional viu nascer a sua figura mais icônica, Zé do Caixão. O diretor José Mojica Marins contou que a ideia do personagem veio após ter um pesadelo onde ele era arrastado para um cemitério por uma figura trajando preto. O filme que fala de um coveiro temido por uma cidade que realiza diversos atos maléficos foi um sucesso absoluto na época que lançou, sendo um marco sem precedentes no cinema brasileiro e alavancando a carreira de Mojica.
Entretanto, ele enfrentou muitos problemas para produzir mais filmes, sendo bastante perseguido pela ditadura militar, com o departamento de censura não o deixando em paz em momento algum. Mesmo assim, ele fez diversos longas que perpetuaram a figura de Zé do Caixão no imaginário popular brasileiro, até mesmo sendo reconhecido lá fora. O ator Elijah Wood (Trilogia O Senhor dos Anéis) está empenhado em fazer uma adaptação em inglês do personagem, mas que ainda não tem previsão de lançamento.
Se antes foi mencionado aqui o Cinema Novo, nada mais justo que falar do outro movimento que surgiu praticamente como uma resposta a ele, o Cinema Marginal. A ideia era ser uma contracultura, trazendo histórias mais viscerais, caóticas, e com elementos cinematográficos próximos do que era popular no período, refletindo o sentimento social do Brasil, que naquela época, via a crescente escalada da ditadura militar operando no país.
Eis que em 1968, Rogério Sganzerla surge com seu Bandido da Luz Vermelha. Baseado na história do criminoso real, o filme contava uma história pautada em diversos gêneros, com uma edição muito diferente do que era visto no período no Brasil, e por vezes, assumia um olhar até mesmo jornalístico e documental, possuindo uma locução semelhante a de rádio, presente em grande parte da obra. Lançou poucos dias antes de ser declarado o AI-5 pela ditadura militar.
Se no último filme falou-se sobre ficção com olhar documental, aqui é documentário olhando o mais aproximado possível para a realidade. Em 1962, João Pedro Teixeira, o líder da liga camponesa de Sapé, no estado da Paraíba, foi assassinado em um crime que até hoje não foi completamente solucionado. Em 1964, o cineasta Eduardo Coutinho veio com a ideia de fazer um filme sobre o acontecimento, com as próprias pessoas que faziam parte da história de Pedro, incluindo sua esposa. Mas a produção foi interrompida pela ditadura militar, que confiscou o pouco material que havia sido feito para o longa.
20 anos depois, com a ditadura quase no fim, Coutinho conseguiu recuperar parte do material e agora o foco das coisas mudou. Ele resolveu ir atrás das pessoas que fariam parte da produção do filme, para saber o que mudou em suas vidas desde então, tendo como o centro de tudo, Elizabete Teixeira, esposa de Pedro. Um documentário inesquecível sobre a importância de se preservar a memória, sobretudo daqueles que não possuem o conhecimento necessário para fazer isso, pois o que eles sabem, podem revelar muito sobre o que nosso país ainda não faz ideia. A obra mais impactante e significativa do documentarista que soube como poucos dominar esse gênero aqui no Brasil.
O melhor curta-metragem brasileiro de todos os tempos, segundo a Abbracine. A produção de 15 minutos de Jorge Furtado utiliza-se de um texto que dá voltas nele próprio para denunciar a triste realidade da região da Ilha das Flores, no Rio Grande do Sul, que antigamente era onde o lixo da cidade de Porto Alegre era despejado. Uma excelente reflexão sobre como nosso sistema jamais favorece quem está nos níveis mais baixos da sociedade.
Enquanto o mundo inteiro não tirava os olhos de Titanic, aqui, a atenção se dividia com Central do Brasil. Dora (Fernanda Montenegro) escreve cartas para analfabetos na Central do Brasil no Rio de Janeiro, mas ela se vê em uma situação que vai mexer com sua vida, quando Josué (Vinícius de Oliveira) perde sua mãe em um acidente próximo de seu trabalho. Dora então, parte em uma viagem para devolver Josué para sua família.
Também lembramos desse filme como a vez que o Brasil esteve mais perto de vencer um Oscar, pois Fernanda Montenegro foi indicada na categoria de Melhor Atriz, que acabou perdendo a estatueta para Gwyneth Paltrow em Shakespeare Apaixonado (1999).
Em 1999, a Globo fez uma minissérie baseada em O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. No ano seguinte, ela foi reeditada para o formato de filme, e assim, fez ainda mais sucesso do que na exibição original.
A comédia de Guel Arraes conquistou o público com seu roteiro de fácil apreciação e contando com personagens marcantes sendo interpretados por medalhões do cinema brasileiro, como Fernanda Montenegro, Lima Duarte, Rogério Cardoso e pela boa geração de atores que a Retomada do Cinema Brasileiro ajudou a tornar famosos, como Selton Mello, Matheus Nachtergaele, Virgínia Cavendish, entre outros. Em dezembro deste ano, estreia a sequência, 24 anos depois do primeiro.
O filme-denúncia de Laís Bodanzky foi o primeiro protagonizado por Rodrigo Santoro, um dos atores brasileiros mais conhecidos dos últimos tempos, não só no Brasil, como internacionalmente.
A trama fala do jovem Neto, que é internado forçadamente em uma clínica psiquiátrica por seu pai (Othon Bastos). Lá, ele sofre todo tipo de tratamento diferente, que afeta sua saúde mental.
Baseado em uma história real, foi muito importante para debater a questão da luta antimanicomial no Brasil, principalmente porque lançou pouco tempo depois da morte de Damião Ximenes na Clínica Guararapes, em Sobral.
Provavelmente o filme brasileiro mais reconhecido mundialmente, e não é para menos. Baseado em fatos reais, o filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund traz um recorte da favela da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, entre os anos 1960 e 1980, quando a gangue de Zé Pequeno (Douglas Silva/Leandro Firmino) dominava a região. A história é narrada por Buscapé (Alexandre Rodrigues), morador da favela, que sonha em ser fotógrafo.
De um primor técnico sem igual no cinema brasileiro, o longa rapidamente deixou sua marca no audiovisual, sendo celebrado até os dias de hoje, com uma série continuação lançando em breve, pelo streaming da Max.
José Padilha teve a ideia de fazer um filme, com base no livro Tropa de Elite, escrito por André Batista, Luiz Eduardo Soares e Rodrigo Pimentel. O filme teria bases reais mas uma história fictícia, mostrando o caminho de um jovem que queria entrar para a força tática do Rio de Janeiro, o BOPE, para futuramente assumir o cargo de seu tutor. Mas tudo isso mudou quando o longa foi para a edição, em que Daniel Rezende percebeu que o filme se tornaria mais interessante se a perspectiva fosse do capitão do BOPE, Nascimento. Assim, nascia um filme que é palco para debates até hoje.
Capitão Nascimento (Wagner Moura), líder do batalhão do Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro, está pensando em sair do cargo para passar mais tempo com a família, visto que seu filho está para nascer. Ele vê, na operação para pacificar uma favela com a chegada do Papa João Paulo II ao Brasil, a oportunidade perfeita de treinar dois policiais para o substituir, Neto (Caio Junqueira) e Mathias (André Ramiro).
Tropa de Elite vazou antes de chegar aos cinemas, o que de certa forma contribuiu para sua popularização, e quando estreou nos cinemas, muitas pessoas fizeram questão de assistir novamente nas telonas. Foi um sucesso absoluto, mas gerou críticas por parte das pessoas que entenderam que o filme estava glorificando os atos brutais que o BOPE realizava em suas operações.
Em 2010, foi lançada a continuação, com o subtítulo de ‘’O Inimigo Agora É Outro’’. Padilha dessa vez direcionou melhor sobre o que queria dizer, pois entendia que muita gente havia interpretado erroneamente o que o anterior estava falando. No segundo, o foco agora era denunciar como as milícias do Rio de Janeiro e a política local andam juntas, envenenando o sistema com atos corruptos. O diretor teve que ir embora do Brasil por ter recebido ameaças de morte pelas críticas que fez no longa. Os debates sobre os temas que os filmes abordam estão muito longe de acabar.
O diretor recifense Kléber Mendonça Filho já tinha uma carreira bem consolidada em 2019. Vindo dos elogiados O Som Ao Redor (2012) e Aquarius (2016), ele resolveu fazer um filme um pouco mais diferente, indo para o sertão brasileiro em um futuro relativamente distópico.
No povoado de Bacurau, começam a ocorrer uma série de mortes inexplicáveis de seus cidadãos. Não demora muito para a população perceber que existe algo de errado acontecendo, e logo se unem para resolver essa situação que está lhes custando a paz.
Bacurau foi amplamente aclamado em seu lançamento, sendo um caso recente de filme que foi comentado por muito tempo, carregando consigo fortes alegorias ao momento político que o Brasil vivia no momento, mas indo além disso, tratando de temas como o descaso político com o interior, os ecos do imperialismo, e mais. E quem nasce em Bacurau é o quê?
O jornalista e pesquisador em Teoria e Discurso no Cinema e nas Artes do Vídeo pela Universidade Estadual do Paraná (UFPR), Samuel Carvalho, explica como os filmes brasileiros têm o poder de mostrar um espelho de nossa sociedade:
Pensar o cinema brasileiro é mais do que apenas listar, assistir ou catalogar o que se produz de audiovisualidades em nosso país, que é perpassado por inúmeras marcas enquanto arte. Quando pensamos cinema brasileiro é preciso ter convicção daquilo que nos atravessa enquanto nação e que nos classifica como um país continental, latino americano, sul americano, que fala português, que fala guajajara, mawé, macuxi, ticuna e muitos outros idiomas. Somos dotados de diversidade de cores, diversidade de culturas, vivências, corpos e existências. Logo, pensar cinema brasileiro, nos apropriar dessa arte, é decolonizar nosso olhar de uma imagética de subalternidade, colocada por uma indústria midiática estrangeira que nos distancia de tudo aquilo que nos qualifica como uma nação única no mundo. Daí surgem os jargões: “cinema brasileiro é ruim” ou “cinema brasileiro é mal feito”, concepções equivocadas que desconsideram a potencialidade de uma arte produzida por gente de verdade e não apenas por lucros. Mais do que qualquer outra coisa, pensar cinema brasileiro significa tomar posse da nossa memória. Ter concepção que os filmes, tão precisamente listados nesse texto, são apenas uma pequena mostra, que se ramifica e se desdobra em diversas outras obras, que ao longo do tempo, constroem a memória do nosso povo. E que a partir desse ponto inicial possamos desbravar Helena Ignez, Carlos Reichenbach, Neville D’Almeida, Júlio Bressane, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy, Cléo de Verberena, Anna Muylaert, Jean Garrett, Adélia Sampaio, Odilon Lopes, Lázaro Ramos, Divino Tserewahú, André Novais, Walter Hugo Khouri, Leon Hirszman, Karim Aïnouz etc, e para além desses, aqueles produzem cinema do nosso lado, através de curtas, documentários, animações, filmes verticais, filmes ensaios e uma gama de possibilidade que o cinema traz em nos identificar aquilo nós somos: brasileiros.